O Eneacórnio


  
Capítulo 1

No remoto reino de Shannurag, num canto perdido e quase amaldiçoado da Ásia Menor, habitava em priscas eras uma estranha criatura: o eneacórnio. O diabo de nove chifres retorcidos, filho de um imenso dragão incendiário e uma esfinge pavorosa. Um monstro, tanto quanto aqueles que lhe conceberam. A monstruosidade em sua plenitude, dada forma num ser predestinado a calcinar todo lugar por onde passasse, extinguindo-lhe qualquer tênue resquício de vida. Aliás, o verdadeiro antônimo da palavra.

O toque de cada um dos cornos da besta tinha propriedades destrutivas distintas, conforme a inclinação que o bicho desse à cabeça, ao atacar. Podia ser uma destruição física, como dilacerar um órgão do corpo. Podia ser também uma investida contra o espírito, daquelas que não provocam manifestações de dor, mas vão consumindo as pessoas, aos poucos, por dentro: uma desilusão intensa, uma afronta moral, um descaso inominável para com os valores que são caros ao ser humano.

Como um Midas às avessas, o eneacórnio condenava tudo que tocava à ruína. Por essa razão, era temido por todos; ao menos, pela totalidade dos que ainda não houvessem sido alcançados por um de seus chifres mais perigosos: o da degeneração moral. Extremamente falante, o bicho usava seu verbo fácil para juntar plateias, nas quais cuidava de recrutar suas vítimas. Não raro, propunha-se o desafio de arregimentar as almas mais jovens, além daquelas que considerasse as mais inteligentes, para provar a si mesmo, e a quem ousasse duvidar, sua ilimitada capacidade de convencimento.

E inoculava o veneno da corrupção da alma, homeopaticamente, nos alvos escolhidos. Uma vez, pela poderosa lâmina do corno, rasgada a fenda na consciência do infeliz, o estrago estava feito. Pouco a pouco as transformações se iniciariam: o caráter e a personalidade dia a dia destroçados até o limite que o servilismo admite; a percepção dos fatos mais óbvios alterada por completo, com a natural aceitação de novos dogmas; a idolatria pela criatura, que prima por se fazer ver com uma beleza que somente os cegos podiam admirar.

O eneacórnio criara o seu mundo imaginário, para o qual lograva cooptar uma legião cada vez maior de seguidores, mergulhando-os sem reação na treva absoluta. Gente que, anos a fio, até hoje, lhe rende améns, com a convicção de quem vê o Salvador por trás da pelugem grisalha a ocultar suas feições horrendas. Duas gerações já se deixaram abduzir pela besta de Shannurag. Quantos mais ainda se deixarão levar por essa maldição, tão eficaz em privar da razão todo aquele que é tocado pelo mais malévolo dos nove chavelhos?

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